Foto de Steve Arnold.

Oitudojoia

“Faz tempo que você não escreve. Seu blog virou álbum de figurinhas. Sinto falta das suas palavras.”

3 min readNov 6, 2016

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Mas é que o tempo anda tão escasso, mas é que eu tive que trabalhar até mais tarde esses dias, mas é que eu peguei um baita trânsito, mas é que a pós-graduação está corrida, mas é que minha internet está com problemas.

Mas é que tem horas que a vontade simplesmente não vem.

E esse turbilhão de motivos esfarrapados que a gente inventa pra se convencer que existe desculpa pra tudo. Os dias seguem e a gente continua inventando desculpa pra tudo.

Só não inventa desculpa pra vida passar em branco. Segue acreditando que é só guardar os papéis na gaveta e que está tudo bem agora que a mesa está em ordem, veja com seus próprios olhos. Que a sujeira acumulada embaixo do sofá um dia vai embora sozinha. E que não há problema algum em comprar tênis novos, porque os tênis velhos podem servir para outra pessoa, e que tudo bem.

E que tudo bem.

E então a gente estabelece duas ou três metas de curto prazo — sintoma de uma geração que sonha grande e faz pequeno — e também acha que está tudo bem. Um dia uma professora disse que a geração dos nossos avós trabalhava a vida inteira para ter o que deixar para os filhos, que a geração dos nossos pais trabalhava a vida inteira para ter pelo menos uma aposentadoria confortável e que a nossa geração trabalha para comprar a comida do mês que vem. E que é assim que funciona, e que tudo bem.

Daí a gente fala em mudar o mundo e continua jogando bituca de cigarro na calçada e demorando cinco minutos a mais no banho pensando na vida. Afinal, sou eu que pago minhas contas, então tudo bem. A gente acha um absurdo o que fazem com os animaizinhos no abatedouro — e coloca ketchup em cima.

E aí a gente acha inaceitável que continue existindo guerra no mundo em pleno século vinte e um, mas fica bravo quando o vizinho bate a porta com força no apartamento ao lado — e daí a gente resolve bater a porta com força também para se vingar.

Na segunda-feira, a gente tem sempre vários e-mails para responder, contas para pagar, notícias para ler, assuntos importantes para resolver — e não conta pra ninguém que ficou até as duas horas da madrugada bisbilhotando a vida dos outros na internet. Depois a gente corre contra o tempo porque precisa se encher de referências incríveis e produzir porcaria nenhuma.

E a gente tem o maior orgulho de ter um celular que parece coisa-de-outro-mundo quando sequer foi a gente que fez. A gente só pagou caro pra ter. E então a gente segue acreditando que dá pra ser feliz em um mundo onde tudo se paga caro pra ter.

Mas é que não deu tempo de levantar a bunda da cadeira e fazer, mas é que eu estive ocupado batendo a porta com força para incomodar o vizinho e trabalhando muito esses últimos dias, sabe como é. Então a gente assiste a um bom filme e acha que vivendo a vida dos outros vai estar tudo bem.

Pra mentira dos outros a gente não inventa desculpa quando não convém.

Ainda é terça-feira e ainda é outubro.

E enquanto a gente achar que está tudo bem, vai estar tudo bem.

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